Os avanços da causa LGBT+ no Brasil — e o que ainda falta

Publicado em 17 de maio de 2023 às 14h30min

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Não faz muito tempo, ser gay no Brasil era praticamente assinar um atestado de marginalidade. A população não-heteronormativa não tinha direitos civis mínimos garantidos e precisava enfrentar não só o preconceito e a discriminação — que ainda persistem — como também tinham mais dificuldades do que o normal para conseguir uma vida digna.

Dos anos 1970 para cá muito mudou. Principalmente por conta da militância, do ativismo. Entre os marcos dessa primeira era de luta em prol de tais minorias está a fundação do jornal Lampião da Esquina — periódico que circulou entre 1978 e 1981 — e a fundação do Somos: Grupo de Afirmação Homossexual, também de 1978. Também gestada no mesmo período, a associação Grupo Gay da Bahia (GGB), oficializada em 1980, é a mais antiga organização em defesa dos homossexuais ainda em atividade no país.

“Na época, chamávamos isso de movimento homossexual brasileiro”, lembra o antropólogo Luiz Mott, professor aposentado da Universidade Federal da Bahia, fundador do GGB e decano do movimento LGBT brasileiro.

Era um momento de sensibilizar a sociedade e, ao mesmo tempo, dar visibilidade a todos os não-heteronormativos. Buscar direitos, em tempos ainda assombrados pela ditadura militar e toda a rigidez moralista. “Ser gay é legal”, apregoava o GGB; na prática, a orientação ainda carecia de legalidade.

Para Mott, a primeira conquista histórica do movimento foi o entendimento, por parte do Conselho Federal de Medicina, de que o termo homossexualismo precisava ser substituído por homossexualidade. “Conseguimos que fosse retirado da lista de transtornos sexuais e passasse, a partir de 1985, a ser uma orientação sexual tão saudável e normal como as demais”, frisa ele. Sim, em 1985, cinco anos antes da Organização Mundial da Saúde institucionalizar o mesmo em âmbito global.

Apoios importantes

O Grupo Somos conseguiu arregimentar diversas personalidades. Seus membros eram nomes respeitáveis como o escritor João Silvério Trevisan, o antropólogo Peter Fry, o artista plástico Darcy Penteado (1926-1987), o cineasta Jean-Claude Bernardet, entre outros. “Esses intelectuais, além do advogado João Antônio Mascarenhas [(1927-1998)], deram visibilidade pela primeira vez a uma população escondida, marginalizada”, comenta Mott.

Mascarenhas fundou e presidiu o grupo militante Triângulo Rosa, que funcionou do fim dos anos 1970 até 1988. “Ele foi o primeiro gay a falar no Congresso Nacional, em 1988”, cita o pedagogo Toni Reis, diretor-presidente da Aliança Nacional LGBTI+ e presidente da Associação Brasileira de Famílias Homotransafetivas, que ainda reconhece a importância, entre os pioneiros da luta LGBT no Brasil, do próprio Mott, da filósofa Rosely Roth (1959-1990) e da ativista Jovanna Baby.

“E também da Rogéria [(1943-2017)], que não era militante, mas foi uma artista que deu visibilidade à nossa causa, como atriz que estava em todas as novelas. Realmente contribuiu”, afirma Reis.

Os ativistas também reconhecem o papel de políticos, de jornalistas e de artistas simpatizantes. Mott recorda que o GGB realizou, nos anos 1980, um abaixo-assinado “pela despatologização da homossexualidade”. Foram 16 mil assinaturas, entre as quais de ilustres como os músicos Gilberto Gil e Caetano Veloso e políticos como Fernando Henrique Cardoso e Ulysses Guimarães (1916-1992).

Ele também recorda que mesmo naquele tempo pioneiro, muitos jornalistas e apresentadores de TV costumavam convidar militantes LGBT para entrevistas, dando visibilidade à causa. “E como apoiadores mais importantes do movimento, lembro da psicóloga e depois deputada Marta Suplicy. Ela foi a nossa Princesa Isabel, encabeçando a luta pelo reconhecimento das uniões estáveis [entre pessoas do mesmo sexo]”, pontua Mott. “Seu apoio e do [então] marido, Eduardo Suplicy, além de políticos como Ulysses Guimarães e o próprio FHC foram fundamentais.”

O antropólogo enfatiza que Fernando Henrique foi “o primeiro presidente da República a escrever num documento, no plano nacional dos Direitos Humanos, sobre os direitos dos homossexuais, e depois falou a palavra homossexual ao defender o casamento homossexual”.

Presidente do Instituto Brasileiro Trans de Educação, a geógrafa Sayonara Nogueira recorda ainda o papel precursor da política Kátia Tapety, a primeira transexual a se eleger para um cargo político no Brasil. Ela foi vereadora por três mandatos consecutivos, eleita a partir de 1992, em Colônia do Piauí. Em 2004 foi eleita vice-prefeita da cidade piauiense.

Avanços históricos

Em 1997, os homossexuais brasileiros pela primeira vez puderam, com orgulho, sair do armário. Ocorreu em São Paulo a primeira Parada Gay do país, reunindo de 500 a 2 mil participantes — a depender de quem fez as estimativas. Foi organizada por sete grupos de ativistas gays e dois núcleos de partidos políticos, um do PT, outro do PSTU.

Um dos organizadores foi um dos pioneiros do ativismo LGBT no Brasil, Beto de Jesus, hoje diretor para o Brasil da Aids Healthcare Association. “Pensando nossa história acho que temos um grande desafio à frente: precisamos voltar a ser um movimento comunitário, orgânico, solidário, com empatia, além de precisarmos urgentemente voltar as ruas. As paradas são extremamente importantes, mas não substituem a dinâmica das ruas”, comenta ele.

“O Brasil segue sendo um lugar perigoso para a comunidade LGBTQIA+. Por mais que as páginas LGBTQIA+ as redes sociais, sejam importantes elas não dão conta de envolver todas as pessoas e seguimos dentro da bolha”, acrescenta.

A partir das pautas das paradas anuais — que hoje são mais de 250 em todo o país — e da pressão dos ativistas, os direitos civis dos LGBT avançaram. Em 2011, os homossexuais tiveram o reconhecimento do direito à união estável. Dois anos mais tarde, a Comissão de Constituição e Justiça aprovou jurisprudência determinando que cartórios também realizassem casamento civil para casais homoafetivos.

Desde 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) permite que casais do mesmo sexo formalizem processos de adoção de crianças. Tabu histórico, a doação de sangue por pessoas LGBT passou a ser permitida no Brasil a partir de uma decisão de 2020 do STF.

Nogueira lembra ainda a portaria do Sistema Único de Saúde (SUS) que, a partir de 2009, passou a inserir “o uso do nome social de pessoas trans no sistema”. E como isso acabou se espalhando por outras esferas da educação e da administração pública. “Até chegarmos à possibilidade da mudança do registro civil por via administrativa em 2018”, salienta.

“E por fim, a criminalização da LGBTfobia em 2019 em que as práticas homofóbicas e transfóbicas passam a ser enquadradas como crime de racismo até que o Congresso Nacional aprove uma lei específica sobre o preconceito contra esses grupos”, pontua a geógrafa. “E se pensarmos nestes avanços, temos que refletir que é tudo muito recente e com uma ausência do Legislativo em legislar sobre nossa comunidade que ainda enfrente sérios problemas e dificuldades devido ao preconceito e a discriminação.”

Voluntário da Associação da Parada do Orgulho LGBT+ de São Paulo de 2004 a 2008, o médico de família e professor universitário Murilo Moura Sarno cita ainda como avanço a normativa do SUS de bancar o acesso ao tratamento de profilaxia de pré-exposição para HIV, em 2017, “além da confirmação [no ano seguinte] de que pessoas indetectáveis são intransmissíveis para HIV, pois a comunidade LGBT já sofreu muito com essa epidemia e muitos dos avanços ocorreram por pressão dos ativistas dos movimentos”.

Problemas atuais

Apesar dos avanços, problemas persistem. Para Mott, o principal é a letalidade — o quanto os crimes de ódio contra LGBTs ainda matam no país. O GGB anualmente divulga dados sobre a questão. No último levantamento, de 2022, foram 356 homossexuais e transexuais mortos, segundo a associação. Segundo o grupo, já foram contabilizados 7231 “homocídios”, no país, como Mott costuma chamar esse tipo de homicídio.

No governo FHC, a média anual era de 127 assassinatos. Na primeira era Lula, 163. Sob Dilma Rousseff, foram 296 por ano. Com Michel Temer no poder, 425 a cada 365 dias. Na gestão de Jair Bolsonaro, o número caiu um pouco — 303 mortes por ano. Mas houve uma pandemia no meio do caminho, o que pode ter significado também um período de maior reclusão e menos exposição.

“A morte de indivíduos é a pior forma de manifestação da homofobia”, argumenta o antropólogo.

O preconceito ainda é grande e, para Toni Reis, a aceitação passa pelas religiões, tradicionalmente avessas a tudo o que não for heteronormativo. “Temos de abrir um diálogo desarmado, com muita empatia e solidariedade. Conversar com as religiões sem ataques. Falar que nós queremos ser felizes, construir nossas famílias, viver de nossa forma. E eles que vivam a forma deles, todos se respeitando”, comenta.

Nogueira acredita que o fim da discriminação precisa começar pela educação. “É preciso que as universidades tragam a temática da diversidade sexual para as grades curriculares e que o sistema de ensino invista na educação continuada de docentes. É na educação básica que temos de combater o preconceito e a discriminação em relação à nossa comunidade”, defende ela.

“Um outro desafio importante é retomar nosso protagonismo em relação ao HIV/Aids. Todo avanço que tivemos nesses 40 anos de pandemia deveu-se fortemente a articulação do movimento de homens gays e pessoas trans, que forçou a agenda política para elaboração de políticas públicas e garantia de direitos para as pessoas que vivem com HIV/Aids”, acrescenta Beto de Jesus. “Homens gays e pessoas trans seguem com alta prevalência ao HIV/Aids e não podemos deixar essa luta recrudescer, os nossos seguem se infectando e morrendo.”

Nessa luta, há novos nomes que se somam aos ativistas históricos. Este ano, pela primeira vez, o Congresso tem duas deputadas trans, Erika Hilton e Duda Salabert. Segundo levantamento do Programa Voto com Orgulho, da Aliança Nacional LGBTI+, nas eleições de 2022, foram eleitos no total 20 políticos LGBT: 13 deputados estaduais, um deputado distrital, cinco deputados federais e uma governadora.

Na conta da entidade, não aparece o nome do governo gaúcho Eduardo Leite, homossexual que não é visto como ativista da causa. Governadora do Rio Grande do Norte, Fátima Bezerra aparece na lista. Ela já declarou que “em sua vida pública ou privada nunca existiram armários”.

ADURN Sindicato
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