Enem: não basta adiar, é preciso debater o calendário

Publicado em 28 de maio de 2020 às 16h06min

Tag(s): Educação



Em seus 22 anos de trajetória, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) se consolidou como o principal mecanismo de acesso ao ensino superior no Brasil. Todas as universidades federais usam a nota do exame de alguma forma em seus processos de admissão. Através do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) instituições públicas federais, estaduais e municipais de ensino superior selecionam candidatos de acordo com suas notas no exame. Em 2019, foram disponibilizadas 294 mil vagas dessa maneira para os 3,9 milhões de candidatos que fizeram as provas em dois finais de semana consecutivos. O ensino médio brasileiro atende 7,5 milhões de alunos, sendo 86% na rede pública de ensino.

As notas do Enem também são utilizadas em processos seletivos de instituições privadas, além de servirem como parâmetro para fornecimento de subsídio estudantil pelo Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) e pelo Programa Universidade para Todos (ProUni), que em 2019 ofereceu 413 mil bolsas de estudos. O Enem também é reconhecido fora do Brasil, sendo aceito como forma de acesso em 42 instituições portuguesas.

Para este ano de 2020, em plena pandemia e com o fechamento das escolas em todo o país, o cronograma do Enem segue mantido nas datas de 01 e 08 de novembro para realização das provas no formato impresso, e 22 e 29 de novembro para as provas no formato digital. 

O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), instituição oficialmente responsável pelo exame, decidiu, após mobilização da sociedade civil e da comunidade educacional e de derrota avassaladora no Senado Federal, adiar as datas previstas de provas. Mas isso não é, ainda, suficiente.

A situação de incerteza que vivemos e o prognóstico de que a Covid-19 continuará ativa no Brasil por, pelo menos, três ou quatro meses, tem levado muitos educadores, agentes públicos, conselhos de educação, governadores e prefeitos a buscarem soluções para a retomada do calendário letivo. Enquanto as escolas da rede privada recorreram ao ensino a distância e têm enfrentado desafios pedagógicos profundos; na rede pública, a mesma iniciativa enfrentou ainda mais obstáculos. Para amenizar a situação, aulas começaram a ser transmitidas pela televisão e pelo rádio. Mesmo assim, não é suficiente para a garantia de educação de qualidade, sem discriminações.

Acesso a internet, falta de estrutura e fome

A Pesquisa por Amostra Domiciliar Contínua (PnadC) de 2017 traz dados reveladores sobre o acesso a computador, tablet, internet e conexão com banda larga, nos domicílios, em cada unidade da federação. Mais da metade delas não chega sequer a 60% com esse tipo de conexão. Enquanto apenas 42% dos estudantes secundaristas da rede pública possuem computador/tablet e acesso com banda larga em casa, esse percentual chega a 83% entre os estudantes da rede privada.

Muitos vivem em casas com poucos cômodos e em situação de insalubridade, sem água potável, sem rede de esgoto, sem um espaço adequado para estudos. São 35 milhões de pessoas sem água tratada e 100 milhões de pessoas sem coleta de esgoto.

Para minimizar a falta do professor, aqueles que estão em casa fazem as vezes. Ou não. 38 milhões de adultos estão em situação de analfabetismo funcional no Brasil. Ainda falta tempo já que têm que se dividir entre tarefas domésticas e trabalho, o que impacta a educação dos estudantes, que não devem ser relegados ao autodidatismo sem ter nem condições para isso.

Os programas de distribuição de alimentos via alimentação escolar, que atingem normalmente 40 milhões de estudantes, ainda não estão todos funcionando adequadamente e o programa de renda mínima está muito distante de efetuar os repasses para as famílias – somente essa semana um contingente de solicitações foi processada e ainda há milhares na fila do benefício.

Diante desse cenário, somado a toda a carga emocional que tem afetado consideravelmente a saúde mental de professores e estudantes, como se pôde cogitar manter a prova, que é talvez a única chance de milhões de jovens acessarem o ensino superior? É o que nos perguntamos. Mas, para o governo Bolsonaro, não há absurdos que não possam ser cogitados.

Políticas educacionais discriminatórias

As políticas educacionais que vêm sendo implementadas de educação a distância, quando em caráter oficial, estão abraçando as desigualdades sociais e educacionais e, portanto, são discriminatórias. E isso é não só inconstitucional já que é violação primária de direito à educação equitativa e universal como também é uma irresponsabilidade por parte do poder público. A pergunta que fica é: a que custo? 

Já falamos dos custos sociais: profundos, graves e criminosos. 

Mas há também custos financeiros: qual o tamanho do gasto orçamentário de realizar uma prova em condições em que seriam necessários mais espaços físicos à disposição para ter menos aplicantes por sala, portanto mais fiscais de prova, em uma logística bastante complexa e cara?

E há ainda os custos para a saúde pública. Mesmo se todas as condições forem resguardadas, o Enem realizado em novembro poderá disparar uma nova onda de contaminações por coronavírus, colocando em risco não apenas os respondentes e aplicadores, mas todo o país, haja vista a onda de contaminações com o retorno às aulas na França.

Um MEC hipócrita e higienista

Mesmo diante desse cenário calamitoso de ampliação das injustiças sociais, o governo demorou a ceder no adiamento do exame. O ministro da Educação, Abraham Weintraub, em reunião com senadores no início do mês, afirmou que o Enem não serve para corrigir injustiças. 

Já o presidente Jair Bolsonaro assumiu publicamente que há possibilidade de “atrasar um pouco”, porém reforça que seja realizado ainda neste ano. 

Em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, o presidente substituto do Inep, Camilo Mussi, afirmou que não há plano de contingência para a realização do Enem caso a pandemia de Covid-19 se prolongue até novembro. Apesar disso, disse que não há possibilidade de cancelamento do exame. 

Definição participativa do calendário

Submeter todos estes jovens, em situação de excepcional desigualdade de oportunidades, a um mesmo exame para acesso ao ensino superior é injusto e inconstitucional. 

Por isso, nós da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, juntamente com o Centro de Assistência Jurídica Saracura (CAJU) – representados pelo Coletivo de Advogados em Direitos Humanos (CADHu) – e a União Nacional dos Estudantes (UNE) ingressamos como “amicus curiae” em ação da Defensoria Pública da União em que se pede que o Tribunal Regional Federal da 3ª Região reveja decisão para adiar o cronograma do Exame Nacional do Ensino Médio. 

Em abril, a Defensoria obteve uma liminar favorável à revisão do calendário do Enem, mas a medida foi derrubada pelo desembargador Antônio Cedenho a pedido da Advocacia Geral da União (AGU). 

O ministro Abraham Weintraub afirma que deve haver uma consulta pública para “escutar os mais de 4 milhões de estudantes já inscritos para a escolha da nova data de aplicação do exame.” Essa seria uma forma “direta, democrática, transparente e segura” para contornar o problema de calendário.

Após o anúncio do adiamento, assinamos um agravo criticando a consulta online aos estudantes inscritos no Enem, pois ela não resolve a problemática, já que muitos estudantes estão justamente prejudicados por não terem acesso adequado à Internet. 

Mesmo que a consulta se mantenha, ela não contempla o debate que deve ser feito por todos os atores governamentais e não governamentais, alocando nos inscritos uma responsabilidade que deveria ser compartilhada pelos vários entes envolvidos no direito à educação, visando a melhor solução.

Somente adiar o Enem é pouco

O debate em torno do adiamento do Enem mostrou a total falta de compreensão do papel do Enem, do ensino superior e da educação como direito de todos e dever do Estado com objetivo de promover o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (art. 205 da Constituição Federal de 1988).

Em suma, essa situação nas políticas educacionais tem demonstrado a falência do Estado em garantir a cidadania e a dignidade da pessoa humana – dois dos fundamentos da República Federativa do Brasil, descritos no artigo 1º da Constituição Federal de 1988.

Tem demonstrado a falência do Estado em garantir uma sociedade livre, justa e solidária e o desenvolvimento nacional; em erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação – que são os 4 objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, descritos no artigo 3º da Constituição Federal de 1988.

Tem demonstrado a falência do Estado em garantir a igualdade de todas as pessoas perante a lei, sem distinção de qualquer natureza – como preconiza o artigo 5º da Constituição Federal de 1988.

Por fim, tem demonstrado a falência do Estado em garantir o direito à educação – primeiro direito social listado no artigo 6º da Constituição Federal de 1988.

São muitas as violações sobrepostas. Se sairmos com uma solução simplista e não dialogada, a culpa do resultado não terá sido do vírus. Terá sido do Presidente e seu Ministro que, a despeito de todas as recomendações, sem sombra de dúvidas, terão cometido mais um crime de responsabilidade, por ato que terá atentado em cheio o coração da Constituição Federal: a igualdade e os direitos de seu povo.

 

Andressa Pellanda é coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e é mestranda em Ciências (IRI/USP). Daniel Cara é Professor Doutor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e membro do Comitê Diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Ana Helena Rodrigues é assessora de políticas educacionais da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e é mestranda em Ciências (IRI/USP).

 

Fonte: Le Monde Diplomatique

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