Crise da educação só termina se governo Bolsonaro for impedido

Publicado em 30 de junho de 2021 às 11h18min

Tag(s): Educação Pandemia de coronavírus



Em 16 de março de 2020, cem países anunciaram o fechamento de escolas como medida de contenção ao novo coronavírus. Em pouco tempo, todo o mundo via suas instituições de ensino serem fechadas e o medo e as políticas emergenciais se instalarem. No Brasil não foi diferente. Aqui, no entanto, já estávamos vivendo uma profunda crise política, econômica e social, à qual veio se somar a pandemia de Covid-19. Desde então, vivemos uma crise dentro de uma crise.

Na política, uma instabilidade profunda fazia as vezes da corrosão das instituições democráticas, afetadas profundamente pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Desde 2016, uma nova ordem de coisas ocupou o terreno da política, constrangendo a participação social e desconstruindo as políticas de Estado que vinham avançando até então. O país foi tomado por agendas autoritárias e fundamentalistas em todas as esferas, culminando com um Estado tutelado pelo militarismo, sob Bolsonaro. Com a Covid-19, os negacionistas, aliados à necropolítica, deram as caras.

Tanto na esfera política quanto na econômica, mas sobretudo nesta última, o governo Temer gestou o bolsonarismo. A constitucionalização, por vinte anos, de uma política de austeridade agressiva asfixiou nossa população bem antes da crise de falta de oxigênio em Manaus, pela inviabilização das políticas sociais. Paulo Guedes, por sua vez, veio manter e aprofundar uma política econômica para poucos, construída sobre exploração, violação trabalhista, desigualdade social abissal e a redução da presença do Estado na vida do povo. O Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal não são isentos de culpa e têm sido cúmplices na aprovação e na vista grossa a legislações permissivas para com a agenda do governo federal e que promovem o esgarçamento ainda maior dos direitos sociais. A EC 95 do Teto de Gastos foi aprovada, afinal, pelo Congresso e, a despeito das ações diretas de inconstitucionalidade que tramitam no STF, a política de austeridade mais nefasta que já vimos não foi suspensa sequer em um momento de pandemia.

A educação, imersa nesse contexto, é ao mesmo tempo vitrine do fundamentalismo religioso e conservador, em que laicidade e pluralidade de ideias são colocadas em xeque, e vítima das políticas ultraliberais de desfinanciamento das políticas públicas. Damares Alves e Paulo Guedes são a “dupla de três” do Ministério da Educação, que já viu quatro ministros: Vélez Rodríguez, seguidor de Olavo de Carvalho e terraplanista; Abraham Weintraub, que acreditava que universidades tinham plantações de maconha, xingava no Twitter, fazia vídeos em paródia de Dançando na chuva e usava chocolates para explicar mais e mais cortes para a área; Carlos Decotelli, que nem sequer chegou a assumir o cargo por falta de solidez nas informações do próprio currículo; e, finalmente, o atual ministro, o pastor Milton Ribeiro, teólogo e com apreço prioritário pela família e pelos valores morais.

Em meio a essas lideranças – excêntricas – da pasta, nenhum apoio à coordenação federativa para uma resposta emergencial aos efeitos da pandemia na educação, nem na perspectiva técnica nem na financeira. As atividades remotas foram colocadas em prática especialmente pelas redes estaduais, mas também por algumas municipais, a despeito da falta de acesso à internet e a tecnologias por parte de professores e estudantes. Nota técnica do Ipea mostrou que, dos 27,2 milhões de matrículas, cerca de 4,3 milhões não dispunham de acesso domiciliar à internet em banda larga ou 3G/4G para atividades remotas de ensino-aprendizagem. As escolas públicas em regiões mais pobres, como no campo, nas áreas ribeirinhas e remotas, e nas periferias urbanas foram as que mais sofreram com a exclusão escolar de políticas emergenciais elaboradas com base na aceitação por parte dos governos da desigualdade educacional e social. Estima-se que haja mais de 5,1 milhões de crianças e adolescentes em situação de exclusão escolar hoje.

Ainda, as parcerias público-privadas para a realização das atividades remotas tiveram como moeda de troca os dados de milhões de estudantes e trabalhadores da educação. O Brasil está entre os países que menos cobram impostos de três das maiores empresas multinacionais do mundo: Facebook, Alphabet (empresa que controla a Google) e Microsoft. Analisando vinte países em desenvolvimento, pelo menos R$ 15,7 bilhões estão sendo perdidos em razão de regras fiscais injustas. Esse lucro não transformado em impostos poderia pagar 879 mil professores por ano nos vinte países analisados por estudo da ActionAid International, publicado em 2020.

O deslocamento da educação do espaço da escola para o domiciliar se agrava quando observamos esses dados por um recorte de gênero e raça. É sabido, por exemplo, que durante momentos de crise econômica as meninas são responsabilizadas pelo trabalho doméstico não remunerado, ameaça real para o abandono escolar. Pesquisa desenvolvida pela Plan concluiu que, por causa da pandemia, 62% das meninas entrevistadas disseram que estavam tendo dificuldades por não poderem ir à escola ou à universidade. Meninas negras são as mais tocadas pelo trabalho doméstico, que está, junto com a exploração sexual, entre as piores formas de trabalho infantil.

Com crianças e adolescentes em casa, a desproteção aumenta: abusos sexuais, trabalho infantil e violências acontecem majoritariamente em ambiente doméstico e familiar. O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020 apontou que em 84,1% dos casos o autor era conhecido da vítima. Segundo o Ministério da Saúde, 68% dos episódios de violência sexual contra crianças e adolescentes acontecem em ambiente doméstico; em 24% dos casos o agressor é o pai ou padrasto; e em 26% é uma pessoa conhecida. Ainda, 64% dos estupros ocorrem de manhã e de tarde, turnos em que as vítimas poderiam estar na escola.

Com o fechamento das escolas em função da pandemia, a distribuição de alimentos via Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) ficou prejudicada, colocando milhões em risco. O Relatório Global de Crises Alimentares, publicado pelo Programa Mundial de Alimentação (WFP) e pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), estimou que o número de pessoas que enfrentam insegurança alimentar pode ter duplicado em razão da pandemia, passando de 135 milhões de indivíduos em 2019 para 265 milhões no fim de 2020. De acordo com monitoramento realizado pelo WFP, mais de 369 milhões de crianças não estão recebendo alimentação escolar em todo o mundo por conta do fechamento das escolas adotado por 197 países. Ainda, tal interrupção impactou os circuitos populares de abastecimento, importantes para a superação da pobreza no campo e a sobrevivência de assentamentos da reforma agrária, comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas.

Nesse cenário de adoção de políticas emergenciais que não deram conta de responder aos desafios impostos, torna-se ainda mais relevante o controle social, monitoramento, avaliação e construção de diagnósticos precisos que possibilitem a correção de rumos. Tivemos, no entanto, um apagão de dados, de informações e de transparência em 2020, agravado pela suspensão do Censo Demográfico. A população está morrendo, está sem direito à educação e à assistência, e está invisibilizada.

Em 2021, atingimos o pico da pandemia no país, ultrapassando 16 milhões de pessoas que têm ou tiveram coronavírus e 450 mil mortos. Chegamos a ser o país com o maior número de mortes diárias por Covid-19 no mundo durante abril, um ano após o início da crise – sem contabilizar as subnotificações, já que, assim como o apagão de dados, temos um apagão de testagens. Não bastasse esse contexto, a pressão do mercado e das escolas privadas de elite para a reabertura das escolas e o retorno às atividades presenciais ficou ainda maior.

A Câmara dos Deputados fez sua parte para a manutenção histórica da vontade soberana de nossas elites: aprovou o Projeto de Lei n. 5.595/2020, que torna a educação um serviço essencial, obrigando, portanto, a reabertura das escolas independentemente de contexto, seja no pico da pandemia, seja em cenários de guerra ou calamidade pública. Manter o giro da economia que serve à pequena parcela mais rica da população parece ser mais importante que a morte de milhares de pessoas pobres. O Brasil, afinal, não pode parar.

Acontece que, de acordo com as recomendações da Fiocruz, com base no Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, um baixo fator de risco para o retorno às atividades escolares presenciais é determinado pelo patamar de 0 a 9 casos por 100 mil habitantes em sete dias. Além disso, os indicadores de medidas sanitárias a serem adotadas nas escolas são o uso correto e constante de máscara, o distanciamento nos ambientes escolares, a higiene respiratória (boa ventilação) e o rastreamento de contatos em colaboração com a saúde. Outros indicadores também importam, como taxa baixa de contágio nos últimos sete dias, disponibilidade de leitos clínicos de UTI Covid na faixa de ao menos 25% livres, redução de 20% ou mais no número de óbitos e casos de síndrome respiratória aguda grave (SRAG) comparada às duas semanas anteriores, taxa de positividade para Covid-19 menor que 5% e capacidade de detectar, testar, isolar e monitorar pacientes ou contactantes. É necessário diagnosticar pelo menos 80% dos casos no território.

É só acompanhar dez minutos de noticiário para concluir que o Brasil está distante de cumprir as recomendações científicas para um retorno seguro presencial às aulas. As condições epidemiológicas do país e os negacionistas do governo não permitem. As condições de infraestrutura das escolas também não. De acordo com o Censo Escolar 2019, apenas 41,2% das escolas municipais de educação infantil têm banheiro adequado, e 4,6% das escolas da rede municipal e 5,2% da rede estadual não possuem banheiros. No que se refere ao abastecimento de água, apenas 88,8% das escolas de ensino médio são cobertas, índice que é menor ainda na região Norte, sobretudo no Acre, Amapá e Amazonas.

Segundo dados do Programa Conjunto de Monitoramento da OMS e da Unicef para Saneamento e Higiene, 39% das escolas no Brasil não dispõem de estruturas básicas para lavagem das mãos; em termos regionais, apenas 19% das escolas públicas do Amazonas têm acesso ao abastecimento de água, ao passo que a média nacional é de 68%. Em relação ao saneamento, a situação é ainda mais crítica, pois em alguns estados do Norte menos de 10% das escolas têm acesso a serviços públicos de esgotamento. Só 65% das escolas municipais e 84% das escolas estaduais possuíam água encanada; 18% e 14% das instituições das redes municipais e estaduais, respectivamente, usavam poços artesianos; 13% e 5%, cacimba; 6% e 2%, rio; e 3% e 1% não tinham acesso a água.

A média de alunos por turma na educação infantil, de acordo com os dados do Censo Escolar 2020, é dezesseis. Nos anos iniciais do ensino fundamental, a média de alunos por turma é 21 e, nos anos finais do ensino fundamental, a média de alunos por turma foi 27. No ensino médio, a média é de 30 alunos por turma. Com essa lotação, em uma escola que tenha pelo menos uma turma para cada ano, um banheiro por escola não é suficiente para que todos os alunos sigam as normas de higiene indicadas nos protocolos sanitários. De acordo com os dados do Saeb 2019, somente 30% dos professores consideram adequada a ventilação natural de suas escolas.

Para fazer face a esse desafio enorme, seria necessário um orçamento de R$ 181,4 bilhões para a educação em 2021, de acordo com estudo da coalizão Direitos Valem Mais, da qual a Campanha Nacional pelo Direito à Educação faz parte. Isso corresponde a quase R$ 40 bilhões a mais que o que foi proposto na Proposta de Lei Orçamentária 2021. O Congresso Nacional, mais uma vez, cedeu à austeridade: aprovou o Orçamento 2021 com 27% de cortes na educação. Não bastasse, o governo federal realizou bloqueio de R$ 2,7 bilhões, a área mais afetada nessa ação do Executivo.

Falta internet e tecnologia para a educação remota. Falta formação, valorização e condições de trabalho para os profissionais da educação. Falta proteção de dados. Faltam dados! Falta transparência. Falta gestão democrática. Falta financiamento. Falta alimentação escolar. Falta proteção contra abusos, violência e trabalho infantil. Falta infraestrutura. Falta testagem, rastreio, isolamento, monitoramento, ventilação, máscaras, EPIs, leitos, médicos, enfermeiros. Falta saneamento. Falta água. Falta oxigênio. Falta vergonha na cara. Do governo. Do presidente. Da elite econômica. Dos parlamentares que apoiam esses abusos. Falta democracia. Falta cumprimento constitucional. Faltam direitos humanos. Falta humanidade. Falta memória.

Para retomar a garantia do direito à educação, nesse cenário de crise na crise, é preciso retomar investimentos adequados para além do novo e permanente Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb); retomar a centralidade do Plano Nacional de Educação (Lei n. 13.005/2014); levar a sério a gestão democrática da educação, construindo políticas de forma participativa e endereçando os desafios enfrentados no chão da escola; produzir e dar transparência a dados educacionais e sociais. Na contramão disso, o governo tem fomentado agendas de cortes, de militarização de escolas, de regulamentação da educação domiciliar, de censura nas instituições de educação básica e ensino superior, entre outros retrocessos a passos largos.

Para retomar a garantia do direito à educação e de quaisquer direitos, não há outro caminho senão o da retomada do curso da construção popular de um projeto de país, com democracia e justiça social. E esse não é o projeto de Jair Messias Bolsonaro. Para devolvermos a educação à nossa população, precisamos, portanto, impedir esse governo.

 

*Andressa Pellanda é cientista política, educadora, doutoranda em Ciências (IRI-USP) e coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

 

Fonte: Le Mond Diplomatique Brasil 

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