‘Paulo Freire não queria ser imitado, mas reinventado’

Publicado em 20 de setembro de 2021 às 09h54min

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Paulo Roberto Padilha, diretor do Instituto Paulo Freire, fala sobre o centenário do educador e o legado atual do pensamento freiriano

Créditos: Instituto Paulo Freire

Da teoria à prática. Assim é possível resumir a trajetória de Paulo Roberto Padilha, um dos diretores do Instituto Paulo Freire, iniciado em 1991, ao lado do educador e filósofo que, se vivo, completaria 100 anos neste domingo 19. Freire morreu em 1997, em São Paulo, aos 75 anos.

Padilha estudou Paulo Freire na universidade e mais, tarde, quando dava continuidade aos projetos de mestrado e doutorado, teve a oportunidade de conhecer o pernambucano pessoalmente e de atuar em conjunto com as suas ideias, formatando experiências educativas a partir da perspectiva freiriana. Os dois atuaram juntos por quatro anos.

Suas memórias são ‘de uma pessoa simples, um ser escutante, que fazia questão de ouvir as pessoas, promover conectividade’. “Paulo Freire não queria ser imitado, mas reinventado, sempre com base no diálogo, na troca de conhecimento. Ser freiriano não é ser discípulo dele”

Diante o centenário do educador, Padilha fala sobre a obra e legado de Freire e suas contribuições ainda atuais para a sociedade, 100 anos depois. “Se ele estivesse vivo, estaria ainda hoje, se reinventando, e sobretudo, denunciando e anunciando os abusos, os retrocessos, a falta de amorosidade, o nosso empobrecimento cada vez maior”.

CartaCapital: Como Paulo Freire estaria diante o contexto de crise sanitária, política, econômica, social e cultural que vivemos e quais recados são possíveis extrair de suas obras para este momento?

Paulo Roberto Padilha: Na sua vida inteira, Freire buscou a coerência. Ele valorizava não só o pensamento, mas a prática, a união dialética entre teoria e prática. Paulo Freire estaria indignado, triste, mas denunciando os abusos, os retrocessos, a falta de amorosidade, o empobrecimento cada vez maior. A sua obra inteira foi direcionada para a superação das injustiças, da desigualdade social. E hoje, vemos um acirramento mundial, mas no nosso caso em específico, pelo governo que temos hoje, via instância federal, mas também estaduais e municipais, pessoas de ultra direita e direita que não pensam realmente no ser humano, não são humanizadas.

Historicamente a sua obra denuncia a opressão, isso já desde 1959, quando escreveu o seu primeiro livro ‘Educação e a atualidade brasileira’, bem como em ‘Pedagogia do Oprimido’. Ele estaria ainda hoje lutando contra a opressão e afirmando a necessidade de uma edução como prática da liberdade, que emancipa as pessoas por meio do diálogo e que advém de uma amorosidade para com as pessoas, pelo mundo, meio ambiente.

Um pouco antes dele falecer, em 2 de maio de 1997, ele estava escrevendo um livro que depois foi lançado com o nome de ‘Pedagogia da Indignação’ e ele já se mostrava muito preocupado com a questão do meio ambiente, com a falta de respeito diante a diversidade, os indígenas. Ele estava muito bravo com o caso da morte do indígena Galdino Jesus dos Santos, que foi morto queimado por jovens da classe média em Brasília [o caso aconteceu em abril de 1997]. Nesse livro ele falou sobre a justa ira, sobre a necessidade de ficarmos irados diante da injustiça, da violência; sobre a necessidade de termos raiva, mas não uma raiva pessoal, mas contra o capitalismo selvagem, contra o neoliberalismo que só visa a manutenção de um sistema que está destruindo com o planeta e suas formas de vida.

A pedagogia que ele defendia e traduziu em livros como Pedagogia do Oprimido, da Esperança, da Autonomia, da Indignação entre outros, não era fechada em um didatismo, mas uma pedagogia aberta às artes, à Ciência, à tecnologia. Ele foi um homem à frente de seu tempo e, se vivo, hoje ele ainda estaria criando, se reinventando, que é o que fazemos hoje diante suas obras para atualizá-las ao nosso contexto. Freire sempre teve um compromisso não com a qualidade de vida, mas sim com uma vida de qualidade, que é humanizada, que passa pela sensibilidade humana, que dialoga com a educação, com a arte, com a Ciência, e que impulsiona a transformação social.

CC: Por que Paulo Freire foi eleito como inimigo de grupos reacionários e conservadores?

PP: As críticas ácidas e desrespeitosas a Paulo Freire, bem como as fakenews criadas em torno dele, tem menos a ver com a pessoa dele, e mais com a sua proposta político pedagógica. Freire foi muito além de um método e é reconhecido como filósofo pelo mundo. Em 1962, com a experiência de alfabetização de adultos em Angicos, no Rio Grande do Norte, Paulo Freire criou um sistema nacional de educação, que tinha na alfabetização de adultos o primeiro passo, mas também se referia à educação primária, à educação profissional, superior e planetária. As pessoas que o criticam hoje são negacionistas e o engraçado é que o acusam de ser dogmático, sem saber o que isso significa.

Se esses grupos lessem ‘Pedagogia do Oprimido ou ‘Educação como prática da Liberdade’ saberiam que não poderiam chamá-lo de dogmático, porque Freire foi alguém que lutou por uma educação libertadora, emancipatória, e emancipar é como dizer ‘tire suas mãos de cima de mim que eu vou em frente porque tenho capacidade e condição humana para tal’. São pessoas ignorantes, no sentido de ignorar a sua obra, e que estão vinculadas a um capitalismo histórico hoje fortalecido por um totalitarismo político, econômico, neoliberal que só busca o lucro, um capital produtivo que segue financiando as vidas da burguesia e da elite do atraso, como diria Jessé Souza. Temos no Brasil uma burguesia e classe média atrasadas que tem como projeto acabar com os direitos.

CC: O senhor avalia que o pensamento e a prática de Paulo Freire estão dentro das escolas brasileiras?

PP: A escola brasileira sempre foi colonialista, preconceituosa, conservadora, discriminatória, e mesmo escolas da Europa, serviam à escravidão, separavam as culturas, o negro que era preguiçoso. A escola nos educou para sermos obedientes. E Paulo Freire dizia que tínhamos que ser rebeldes e, além disso, sermos transformadores. As avaliações de hoje, não só as internacionais, estão nesse lugar, porque avaliam as competências, desempenho, habilidades, mas não levam em conta a relação humana, a cultura, as comunidades tradicionais. É uma variação que para nós não serve como referência. As avaliações feitas pelo MEC também não servem porque se baseiam na Base Nacional Comum Curricular, que foi construída a partir de uma consulta não considerada, foi aprovada sem que comunidades, universitários fossem ouvidos em suas muitas críticas. É mais uma lei que tecniciza a educação.

Todo o currículo no Brasil caminha para esse utilitarismo. As avaliações, fundamentais não só para a aprendizagem, mas institucionalmente, estão ainda hoje na perspectiva neoliberal, de uma merco escola e pautadas em dimensões que não interessam à vida, à transformação social e à justiça, equidade social.

Paulo Freire era a favor de novas tecnologias, para que a educação fosse feita com qualidade, mesmo que à distância, mas valorizando a cultura, as pessoas, partindo delas, respeitando o direito dos docentes e educandos. A experiência de Angicos, quando Freire conseguiu em 45 dias alfabetizar 300 pessoas, deu certo porque ele respeitava as pessoas, valorizava a cultura dos alunos, as pessoas se sentiam estimuladas dentro do aprender e ensinar, é uma imersão no processo educativo cultural que traz emoção, alegria, e com isso as pessoas aprendem mais.

Nós sabemos como fazer, mas as escolas brasileiras infelizmente não incorporaram, a grosso modo, na escala ampla, a filosofia freiriana. As escolas sempre foram orientadas por um ideário mercantilista, neoliberal, em que a educação é mais um instrumento de dominação. Paulo Freire denunciou isso, tanto que foi exilado. Ele dizia: temos que ser sujeitos da história. Felizmente, no Brasil, temos algumas escolas que trabalham a partir da perspectiva de Freire, leem realidades, fazem incursões com os alunos pela comunidade, tem acesso à cultura geral, popular, respeita, sobretudo, a cultura do povo, se orienta pela educação popular que, por sua vez, é um ato político, que permite a leitura do mundo e a transformação dele.

CC: O senhor destaca alguma experiência exitosa no sentido de dialogar com Paulo Freire?

PP: Em São Paulo, quando ele foi secretário municipal de educação durante o governo da prefeita Luiza Erundina, Freire conseguiu incluir nas escolas públicas municipais a reorientação curricular que previa uma perspectiva interdisciplinar, a formação continuada de professores. A experiência dialogou com a sua metodologia no sentido de  incluir a comunidade, propor a gestão democrática, em que as decisões não eram tomadas apenas pelo diretor escolar, mas por todos os segmentos escolares, que é outra tecnologia social. Propôs um orçamento participativo em que a comunidade era convidada para apresentar os problemas e participar das soluções, outra coisa que Freire sempre defendeu, a denúncia com o anúncio.

Há também muitas experiências derivadas do conceito de ‘escola cidadã’, que Freire entendia como aquela comprometida com a democracia, com o compartilhamento de saberes, transparência, participação, e com um projeto político pedagógico que refletisse a história da comunidade e com avaliações dialógicas, continuadas, formativa, que levam em conta os aspectos da dimensão humana e não só a Matemática, Língua Portuguesa. Isso aconteceu em muitos municípios durante governos populares, caso de Porto Alegre, Rio de Janeiro, Minas Gerais.

CC: Muitas fundações e institutos empresariais atuam junto às redes de educação com consultorias para moldar os currículos para as habilidades socioemocionais. Esse movimento se aproxima do que Freire preconizava?

PP: Historicamente, a direita se apropria da linguagem da esquerda. Existe hoje essa mercantilização da educação concretamente sendo realizada. As competências socioemocionais são importantes sim, mas, muitas vezes, essa linguagem aparentemente bonita é utilizada em prol de uma escola competitiva, baseada no utilitarismo, que oferece uma educação para o consumo e não para  formação de base. Nós temos que retomar essa capacidade de formar na base a cidadania, que promove o diálogo com as diversidades, as diferentes orientações sexuais, os negros, os indígenas, os quilombolas. Temos que trazer essas culturas para a escola. Paulo Freire defendia uma educação intertranscultural que é quando a gente, de fato, cria espaço de relações humanas, de convivência com as culturas caminho pelo qual é possível educar o próprio opressor.

CC: O governo Bolsonaro se diz contra uma educação ideológica, mas defende bandeiras como a do homeeschooling e as escolas militares. Como o senhor avalia esse movimento?

PP: Bolsonaro geralmente diz que os grupos de esquerda só pensam em ideologia. O mundo é ideologizado, a ideologia faz parte das formas de pensar de uma comunidade. Agora, não é surpresa que esse seja o projeto da ultradireita, fascista. Esse totalitarismo não é por acaso. Propostas como a do homeschooling, a própria BNCC que obriga as escolas a cumprirem normas para receberem recursos, deixando de lado a História, a Filosofia, com engodo político, uma boa publicidade, tem como pano de fundo o esvaziamento dos direitos, do funcionalismo público. Precisamos acordar a sociedade no sentido de acreditar que é possível uma outra escola, uma outra forma de se relacionar, que não a lógica consumista, privatista, competitiva, mas humanizada, usando as tecnologias a favor da vida, do cuidado com o planeta.

Da mesma forma, o projeto de militarizar as escolas, um retrocesso evidente, dialoga com a perspectiva do mérito, é a meritocracia em pauta na educação. É mais um projeto que serve à direita, à classe média da elite do atraso, que só quer privilégios e atua para alimentar falsas ideias e concepções de mundo. É um projeto econômico ditatorial que visa o lucro, o consumo, mas não a inclusão social, o respeito à humanidade, à vida.

Fonte: Carta Capital

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