Quando a Educação cruza a trajetória de uma mulher negra

Publicado em 08 de setembro de 2025 às 13h09min

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Quais as chances de uma mulher que nasce pobre e negra conseguir melhorar suas condições de vida? Contra todas as estatísticas, Vilma Vitor Cruz se tornou um ponto fora da curva. Filósofa e professora aposentada do Departamento de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Vilma diz que foi “salva pelo gongo”, ao explicar que foram as políticas públicas criadas à época que permitiram a ela avançar nos estudos e mudar a trajetória de vida.

A voz calma e pausada da professora Vilma Vitor Cruz nem de longe lembra as dificuldades que teve de enfrentar ao longo da vida. De família pobre, sendo a mais nova de um total de quatro irmãos, Vilma é filha de um auxiliar de pedreiro e de mãe costureira, que veio com os pais para Natal fugindo da seca de 1930.

Os pais de Vilma se separaram quando ela ainda era pequena e foi a atenção da mãe com a educação da filha que deu início a uma trajetória diferente daquela que estamos acostumados a ver.

“Todos os meus irmãos saíram de casa muito cedo. Minha mãe teve oito gestações, mas só quatro filhos sobreviveram. Enquanto meus irmãos já eram adolescentes, eu ainda era uma criança. Talvez para salvar um dos filhos, ela investiu muito em mim, porque era mais dependente, ainda era criança, estava ali mais perto, então ela não largou do meu pé e nem eu o dela. Tem um fator nessa história que precisa ser dito que é o das políticas públicas para a Educação. Minha mãe colocou todos os meus irmãos na escola na idade certa, todos fizeram até a 4ª série primária, que é o máximo que eles poderiam ir”, lembra.

Assim como os irmãos, Vilma também entrou na escola na idade correta, mas aos 16 anos precisou começar a trabalhar para cuidar da mãe debilitada. Ela também fez parte do movimento Bandeirante, uma espécie de versão feminina dos escoteiros.

“O bandeirantismo, que foi tolerado pela ditadura militar porque tinha a coisa da disciplina, do rigor com o horário, foi muito importante para me ajudar a fazer o que eu tinha que fazer: estudar, trabalhar e tomar conta de casa e da minha mãe. Foram surgindo as políticas públicas para a educação e minha mãe não perdeu a oportunidade. Fui salva pelo gongo! Tinha uma tia que era serviçal no Colégio das Neves e quando eu ia sair do Jardim de Infância, aos 7 anos, minha tia disse que as freiras iam abrir uma turma para filhos dos trabalhadores do colégio e que ela tinha colocado meu nome para entrar nessa turma. Era uma turma especial, mas lá não havia distinção de circulação, então o recreio era o mesmo, eu já comecei num ambiente que não era o meu de origem. Para mim aquilo foi extremamente importante, de poder conviver com uma realidade diferente da minha. Tive um ambiente que favoreceu muito”, reconhece.

Na 3ª série e já alfabetizada, a mãe agarrou uma outra oportunidade para a filha, o Governo do Estado inaugurou o Instituto Padre Miguelinho, no Alecrim.

 “Não tinha colégio onde eu morava. Eu nasci nas Quintas, circulei entre a Guarita e o Alecrim até uma certa idade. Eu ia parar na 4ª série porque o colégio mais próximo que tinha era o Atheneu e eu não tinha dinheiro para pagar o transporte. Minha mãe foi visionária porque me tirou do Colégio das Neves na 3ª série e me colocou no Padre Miguelinho para fazer a 4ª série e o exame de admissão, que era feito lá. Na época, tinha esse exame para ir para o ginásio, não era algo fácil, era um mini vestibular. Fui aprovada e passei para o ginásio, mas não tinha no Alecrim. Como eu iria para o Atheneu sem condições materiais para isso? Política pública de novo, o governo inaugurou o Instituto Padre Monte, nas Rocas. Era um ginásio industrial e minha mãe não mediu esforços, ela se desdobrou para que eu frequentasse. Quando estou terminando o ginásio, de novo política pública, com a inauguração do Instituto Kennedy, que era a Escola Normal. Eu ia parar no ginasial, mas quando abriu o Kennedy, minha mãe foi atrás de uma vaga. Ela foi extremamente importante e, claro, com a política pública, digo isso porque o Estado tem que fornecer os meios de acesso. Eu fui beneficiada por essa política de construção de escolas”, destaca.

Vilma concluiu a Escola Normal em 1973 e em 1974 foi aprovada em concurso do Estado para ser professora.

“Me tornei professora da escola de aplicação onde me formei! Nascida nas Quintas, criada no Alecrim e já era professora com 23 anos. De origem, não tinha muito pra onde ir, tenho uma irmã que se prostituiu porque não tinha outra perspectiva. Eu, no máximo, seria empregada doméstica, babá, algo nesse sentido. Ganhando meu próprio salário, comecei a estudar por conta própria e prestei vestibular para pedagogia, a nível de 3º grau, e fui aprovada. Me dividi entre o trabalho a universidade e a liderança política, que já vinha exercendo desde o bandeirantismo”, conta.

Professora, estudante e envolvida com causas políticas, Vilma atuou na pastoral da Juventude e foi vigiada durante a Ditadura Militar.

“Na Pastoral da Juventude, grupo do qual participei ativamente durante os anos 1970, período da Ditadura, fui vigiada o tempo inteiro junto com meus colegas. Na universidade me engajei um pouco na reconstituição da democracia do Brasil pelo DCE [Diretório Central dos Estudantes]. Eu não podia fugir da luta”.

Durante esse período Vilma se tornou professora universitária, fez mestrado em Educação ao mesmo tempo que trabalhava. Foi quando surgiu a chance de fazer doutorado na França.

“Foi a única vez que tive a liberação de quatro anos em toda minha trajetória profissional. Deixei minha mãe com o coração partido. Fiz Ciências da Educação na Universidade de Caen, na Normandia, que é uma cidade do desembarque da 2ª Guerra Mundial, histórica. Aproveitei o máximo que pude, depois voltei para minhas atividades, entrei na equipe de pós-graduação, fui orientar alunos de mestrado, doutorado e especialização e, para meu orgulho, todos que orientei estão bem colocados. Inclusive o reitor atual da Universidade do Pará foi meu orientando do mestrado e doutorado, isso para mim é o máximo profissionalmente”.

“A Educação não salva, ela é vida. Uma pessoa que não tem acesso a educação não precisa ir tão longe como fui, mas é necessário ao menos um curso técnico para se virar na vida. A educação é o fio condutor da existência de qualquer pessoa”.

“Eu chamo atenção para as políticas públicas. O Estado tem a obrigação de prover para a população que não tem condição de bancar. Eu fui beneficiada por essas políticas públicas todas que surgiram. Muitos ficaram pelo caminho, mas a oportunidade estava lá. Isso mudou completamente minha trajetória. Enquanto meus irmãos foram para um lado, eu fui para outro”, acrescenta.

O tamanho do Estado

A professora acredita que algumas coisas são inegociáveis e que o discurso tão proliferado sobre diminuir o tamanho do Estado é burro.

“Tem três coisas pelas quais o Estado é responsável que não tem que diminuir nada. Me desculpe a expressão, mas esse é um discurso nojento da burguesia porque ela se beneficia o tempo inteiro de isenção de impostos, corrupção, etc. Mas ela precisa do trabalhador qualificado, que é formado pelo Estado. Quanto mais qualificado o trabalhador, mais lucro, por isso essa ideia do empresariado é burra, eles se beneficiam de um profissional pronto! Por isso mencionei que é preciso, no mínimo, ter um curso técnico. Se você tem um atendente de loja que trata mal a freguesia, o que vai acontecer? A freguesia se afasta, você precisa de um profissional qualificado nem que seja para vender banana. Agora há três coisas das quais o Estado não pode abrir mão: saúde, educação e segurança pública. Isso é dever e de onde vem o dinheiro? Dos impostos, os empresários não querem pagar, mas querem receber!”

Os ataques às universidades

Numa era de polarização política e de avanço sobre as universidades públicas, a professora continua atenta ao que vem acontecendo nas instituições de ensino.

“Embora esteja aposentada, como faço parte da Diretoria para Assuntos para Aposentados do meu sindicato [Sindicato dos Professores da UFRN – Adurn Sindicato], continuo atualizada com o que circula em torno das universidades. Temos vivido agora problemas seríssimos com essa ideia que querem agora reduzir os benefícios do funcionalismo público. O que eles chamam de benefícios foram lutas sindicais desde a Ditadura Militar até agora, foram conquistas. Querem diminuir o número de funcionários, como vai reduzir numa UPA, onde já não é suficiente? Como vai reduzir nas escolas, se há escassez de professor? Tem horário que não há professor para dar aula! É uma profissão em extinção, de risco. Um professor não pode dizer tanto assim com o aluno que ele fala aos pais, que vão à escola com quatro pedras na mão, quando não leva para o Conselho Tutelar. Não estou dizendo que essas coisas não devam existir, mas precisam ser feitas da forma correta. O papel da escola e do professor é disciplinar, se ele não puder fazer isso, vai fazer o quê? Essa questão já chegou à universidade. Tem outra questão que essa geração, diferente da minha, ela não agarra as oportunidades, ela solta. O governo tem construído IFs em tudo quanto é lugar, mas o pessoal entra no curso e desiste. Tem que estudar e existe tempo para isso, você vai fazer isso aos 50 anos? Não, tem que fazer com 20, 30…para depois ir trabalhar. É uma geração que fica protelando. Outro problema é que o governo dá bolsas à iniciativa privada e os dados mostram que eles são frouxos nas exigências e os alunos preferem receber a bolsa para ir para uma instituição onde eles não são cobrados, isso é um problema que o MEC [Ministério da Educação] precisa dar conta porque o governo está financiando e estão saindo profissionais de má qualidade, tem que cobrar ou deixar de financiar”.

Doutrinação ideológica

Pauta da extrema direita, o tema da doutrinação ideológica também foi criticado pla professora.

“Hoje em dia não se fala muito disso, mas o professor tem liberdade de cátedra. Quem decide a bibliografia a ser trabalhada é o professor. O governo não pode interferir e dizer que não vamos trabalhar determinado autor. Quando trabalho determinada teoria com meus alunos, não estou dizendo para segui-la, estou propiciando que o aluno adquira o conhecimento acumulado sobre aquela matéria de diferentes pensadores. Doutrinação é definir um único indivíduo e determinar a estudar apenas aquilo. Agora quando o professor abre o leque, você permite que o aluno faça um balanço daquelas ideias e depois o julgamento é dele, assim como a posição que ele vai assumir. Isso é muito diferente de doutrinação, está tudo fora do lugar! As pessoas estão falando em liberdade, cerceando. Estão falando em direito, não permitindo que os outros tenham direito. Está tudo ao contrário! Quando alguém fala em doutrinação é porque quer doutrinar, querendo se estude um único indivíduo. Estão invertendo o discurso, é um momento complicadíssimo”, resume.

 Para ler sobre marxismo, Vilma conta que viajava a Recife para comprar títulos na Livro Sete, uma famosa livraria à qual se recorria para ter acesso a leituras “não autorizadas” pela Ditadura Militar.

“Li sobre algumas teorias marxistas quando jovem em casa porque saía daqui com o pouco dinheiro que tinha e ia na Livro Sete porque nem nas livrarias de Natal chegava por causa da Ditadura, não vinha para as livrarias, bibliotecas, nem em canto nenhum, nem na universidade se achava, no currículo não entrava… isso é doutrinação, não permitir o acesso”.

Trajetória política

Além de bandeirante, Vilma Vitor também foi integrante da Pastoral da Juventude, que era uma tentativa da Igreja Católica de reorganizar os movimentos que tinham sido fechados na época da ditadura militar.

“Tinha a Juventude Operária, a Juventude Estudantil, Juventude Trabalhadora, são grupos que se reuniam nos anos 1950 e a Pastoral foi um grupo que surgiu no final dos anos 1970, já quando a ditadura dava sinais de decadência, e não era tolerado porque era uma espécie de dissidência da Igreja, que teve dois lados, aquele que apoiava e o que era contra a ditadura, a da Teoria da Libertação, esses grupos eram desse lado. A ditadura jogou pesado, fui monitorada. Eu era secretária da pastoral, que eram apenas ligações de bairro da Igreja de Nossa Senhora da Conceição, na avenida IV, meus tios que eram religiosos tomavam de conta da Igreja. Viajei muito para o interior para fazer evangelização, atividades de educação, eu ainda era estudante da Escola Normal, mas fazia cursos e treinamentos sobre educação, eram coisas saudáveis, não tinha nada a ver com a loucura que a Ditadura pensava que era. Eu não queria guerra, fazia um trabalho assistencial com os jovens, mas fomos perseguidos como comunistas, que é um estigma que até hoje tenho. Quando virei profissional foi a época de reorganização das Associações de Classe porque os sindicatos estavam todos quebrados pela Ditadura. Como orientadora, fui sócio fundadora da Associação dos Orientadores Educacionais do RN. A Associação lutava por direitos classistas, eu não sei onde está o comunismo nisso, era uma luta por melhores salários, por um ambiente de trabalho satisfatório, por respeito às leis. Só porque juntava pessoas, era comunista. Nunca deixei a militância política em paralelo às atividades profissionais, continuo até hoje, agora, pelo direito dos velhinhos, dos aposentados. É uma trajetória de vida ligada ao trabalho, estudo, família e associações. Se alguém me disser que é uma trajetória comunista, estou fora. Eu até discuto, não tenho nada contra… algumas coisas fazem sentido, outras não fazem sentido nenhum, mas até eu ser sacrificada, presa e morta porque eu estou defendendo direitos…é um negócio complicado.

Além de monitorada, Vilma conta que chegou a escapar de ser presa em duas situações, quando estava a caminho do trabalho. Ela viu amigos serem presos e simplesmente desaparecerem, sequestrados pela Ditadura Militar.

“Um fato marcante foi com um colega da Pastoral, que trabalhava no Banco do Brasil, sumiu! Desapareceu! Família não sabia, a Pastoral não sabia, ninguém sabia onde ele estava. Até que um dia fomos fazer uma missão em um presídio de Natal, em Igapó. Fomos rezar, cantar, dar palestras, falar coisas que elevassem o espírito. no refeitório, a primeira pessoa que vi foi meu amigo e ninguém sabia onde ele estava. Eu corri para abraçar e ele disse :’Vilma, se afaste de mim porque pode pegar mal para você’. Aquilo me dói até hoje, o cara estava preso e eles nem avisavam a ninguém! Eu vou defender um regime desses? Impossível! Não contem comigo para essa conversa. Tenho exemplos vivos, eu vivi essa história. Eu me sinto numa condição de não legitimar um regime que acha que você se associar para reivindicar direitos é crime porque eu acho que a gente tem que reivindicar direito sempre!”, defende.

 

Fonte: Saiba Mais 

ADURN Sindicato
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