Renée, mulher e brasileira

Publicado em 13 de março de 2012 às 09h49min

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Já na apresentação deste livro, a professora Marly Vianna consegue uma síntese perfeita da imagem que sempre me vem quando penso na Renée: doçura e delicadeza. Mas durante a leitura vai aparecendo a rocha de firmeza que sustenta essas grandes qualidades humanas. Raízes profundas de convicções políticas abastecem com seiva de vida essa mulher que luta há mais de 70 anos pelas causas da igualdade e da liberdade.
Nasceu no Sul da França e tornou-se uma grande brasileira.
A adolescência ainda não tinha começado e vemos uma menina de 11 anos colhendo dinheiro nas ruas de Marselha, junto com seu irmão, em solidariedade às grandes greves operárias de 1936. A lutadora começa a despontar quando Renée mal deixava a infância, numa França da Frente Popular que nem imaginava a possibilidade de ocupação por Hitler pouco tempo depois.
Antes dos 18 anos, já temos a militante clandestina agarrada ao estribo de trens lotados e vigiados pelos nazistas, levando na outra mão a maleta com armas para os guerrilheiros da Resistência. Se fosse presa, sabia das torturas implacáveis que teria pela frente e dos riscos de ser levada a um campo de concentração, como aconteceu com a irmã mais velha.
Daqui a pouco, naqueles mesmos estribos de trem, já levava um bebê na barriga, fruto do amor que uniria Renée e Apolônio por uma vida inteira, entre as mais belas páginas de amor que se pode selecionar nas lutas revolucionárias do século 20.
Libertação em 1945 e a vinda ao Brasil dois anos depois, grávida do segundo filho, para um engajamento definitivo nas lutas pela liberdade em nosso país. Faz dele o seu país a partir de então, fecundando esta terra com sua generosidade, paciência, perseverança e por sua disposição ilimitada de luta. Com seu grande sentido de amor.
Em décadas de militância comunista na Europa e no Brasil, nunca permitiu que os ideais revolucionários anulassem sua visão crítica, de militante e de mulher. Fala da angústia que sentia entre a necessária disciplina partidária e os questionamentos que não queriam calar. Pacto entre Stálin e Hitler em 1939? Ocupação da Hungria pela União Soviética em 1956? Arrogantes dirigentes partidários, com cortina nas janelas do carro, rodando por uma Moscou cheia de carências? Como explicar tamanha distância entre os ideais de igualdade e a dura realidade que saltava à vista?
Vivendo no Brasil, sua visão crítica segue teimosa. Por que militantes experientes como Apolônio e ela eram confinados em tarefas de retaguarda ou domésticas? Por que o partido tão infalível nunca levou uma figura humana como Apolônio às mais altas esferas dirigentes?
Deste lado do Atlântico, a vida atravessaria três ou quatro etapas muito distintas. Na primeira, Renée não se conforma com a rigidez de uma clandestinidade que lhe parece desnecessária naquele grau de rigor. Uma vida abafada em aparelhos, quando sabia que tinha preparo para atividades políticas muito mais amplas, militante que era. O espírito de disciplina prevalece, mas a visão crítica não morre. Renée se pergunta, neste livro, se deveria ter interpelado mais cedo.
Na dureza da resistência ao regime ditatorial, a dor insuportável de saber que seu companheiro e os dois filhos, René Louis e Raul – os três irmanados então na militância clandestina durante as trevas do Ato 5 – estavam sendo massacrados nos porões do Doi-Codi, restando a ela a absurda impotência de quem se joga contra uma muralha. Dessas brutais torturas, o querido amigo e companheiro de lutas, Mário Alves, jamais voltaria para a esposa Dilma. Mas naquele mesmo ano de 1970 uma outra Dilma derrotaria seus torturadores para se tornar mais tarde a primeira mulher na Presidência da República em nossa história.
Renée é empurrada ao exílio, onde a família se reuniria mais tarde. Revive a França, se anima com as lutas pela Anistia no Brasil, se engaja na mobilização pela reconquista da democracia e brilha como uma das primeiras construtoras do PT, já de volta ao país. O livro mostra sua influência junto ao grande Apolônio na superação do dilema sentido por tantos militantes da velha guarda: partido de massa ou partido puro em questões ideológicas?
Mantendo a visão crítica de sempre, Renée não hesita em reafirmar a opção tomada pelo caminho inovador. Registra que seu companheiro, finalmente, alça no PT a mais que merecida condição de dirigente partidário do mais alto escalão. Sou testemunha ocular da emoção e quase unanimidade com que o partido ouvia sua palavra abalizada de herói revolucionário.
Insisto sempre na idéia de que Apolônio – e todos os que dedicaram a própria vida ao esforço para que o Brasil chegasse ao seu momento atual de democracia e combate à pobreza – não deve ser lembrado como vítima, e sim como herói.
Em 2005, a triste perda do companheiro querido não interrompe a determinação militante de Renée. Somente ao ser convencida de que narrar sua vida neste livro era mais uma tarefa a ser cumprida, numa longa trajetória dedicada ao sonho socialista, afastou as resistências apresentadas por sua impressionante modéstia.
A narrativa sobre sua vida se converte, aqui, numa peça muito preciosa de formação política, resgate histórico, educação para a cidadania. Vale também como profunda reflexão sobre as dificuldades especiais da mulher na luta política, neste momento em que o país possui, pela primeira vez, uma mulher conduzindo os destinos da República. A vida de Renée é uma empolgante história de coragem. Muito mais que isso: é a história de outra mulher vencedora.
Que bom o Brasil ter mulheres como Renée.
Prefácio ao livro Uma vida de lutas, organizado por Marly Vianna, René Louis de Carvalho e Ramón Peña Castro (São Paulo, Editora Fundação Perseu Abramo).
 

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